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Cap. 985 – O enredo do meu samba – Marcelo de Mello

Ciao!!!


Minha primeira lembrança de carnaval não
é muito carnavalesca. Uma matinê onde fui levada por meus pais. E eu, do alto
dos meus 4 ou 5 anos, procurei um canto na sala e me sentei.
A minha segunda memória é de brigar com
o sono para ver o desfile das escolas do Rio de Janeiro.
Por isso, não desperdicei a chance de
ler este livro.
O enredo do meu samba – Marcelo de Mello – Record
(2015)
Marcelo de Mello é editor assistente do
O Globo
e um dos jurados do prêmio Estandarte de Ouro. A partir de
uma série de matérias publicadas no jornal em janeiro e fevereiro de 2013 para
o qual ele entrevistou envolvidos na criação e no trabalho do qual os 15
sambas-enredo selecionados foram apresentados no Carnaval do Rio de Janeiro. O
primeiro é de 1964 e o último de 1993. O autor considera que são necessários 20
anos para perceber se o samba transcendeu o que se esperava e fixou na cultura
popular.
Através de pesquisa e entrevista, ele
descobre bastidores da criação, polêmicas, disputas internas que envolveram a
escolha do samba, de que forma letra e melodia ajudaram ou não no desfile e o
fator “eternidade” que vários deles adquiriram. E eu sou testemunha, porque
alguns que ele menciona – além dos 15 escolhidos – eu não sabia que foram
samba-enredos, por exemplo, Domingo e O amanhã, ambos da União da
Ilha, respectivamente de 1977 e 1978.
Algumas coisas que eu não sabia:
– “Aquarela Brasileira” não teve nota
máxima dos jurados, quando apresentado em 1964. Ou seja, jurado fazendo bobagem
é algo atemporal.
– A comissão de carnaval do Salgueiro em
1971 era coordenada por Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, que comandavam
Maria Augusta, Joãozinho Trinta e Rosa Magalhães. Sério. Li essa linha umas
três vezes para poder absorver a informação. Para o mundo. Se todos estavam no
Salgueiro, quem estava nas demais escolas? Ok, nesta época, o trio comandado era
novato, mas, por favor, né? Todos eles juntos? É maldade. Só podia terminar em
título!
– E justamente o trabalho que resultou
no título reúne academia e sabedoria popular: “Festa para um rei negro” nasceu
de uma proposta de dissertação de Mestrado de Maria Augusta e teve um samba
construído em cima das lembranças do autor sobre as músicas de folia de reis. Encontros
possíveis no carnaval!
– Não deixa de ser curioso notar que o
embate tradição x modernidade nos desfiles sempre existiu. Sim, geração mais
nova, havia vida criativa – e muita! – no carnaval antes do Paulo Barros. O
impacto de Joãozinho Trinta nos desfiles na década de 1970 causou uma ruptura
entre o que era feito até então e o estilo dele que se tornou tendência. Então
veio o campeonato da Império Serrano com Bum bum paticumbum prugurundum,
que foi visto como uma crítica a quem achava que o desfile era só visual e
luxo, em enredos que não diziam muito sobre a cultura nacional. A resposta
demorou sete anos: em 1989, Joãozinho Trinta respondeu com o antológico –
embora não vitorioso – Ratos e urubus, larguem a minha fantasia. Neste
meio tempo, ainda tiveram os enredos visionários de Fernando Pinto para a
Mocidade e depois os tecnológicos de Renato Lage que renderam títulos à escola
de Padre Miguel.
– Este embate também tangenciava outro
confronto: as escolas tradicionais (as quatro grandes) x as novatas que queriam
ascender ao panteão. Para “derrubar” o modelo vigente, o autor afirmou que foi
necessário usar o poder econômico do jogo do bicho e estilo e temas que
destoavam das “rivais”. Para o autor, funcionou a tal ponto de as que se
revezavam no primeiro lugar, enfrentaram/enfrentam longos jejuns sem títulos.
– E outra discussão: emoção x técnica.
Ao longo do livro, ele comenta pontos onde o debate se tornou presente: Imperatriz
Leopoldinense ganhando o título da Beija-Flor em 1989  é o contraponto ao espetáculo que não foi
revisto de Kizomba, da Vila Isabel, em 1988. O livro termina em 1993, portanto,
não pegou a sequencia de títulos da Imperatriz Leopoldinense que me lembro de
serem definidos como “desfile para jurado ver” na década de 1990.
– Outro ponto interessante é que não foi
feita diferença entre sambas vitoriosos ou não. Ele cita sete casos de
composições que não conquistaram títulos, mas se tornaram referência para
outros compositores e sambistas: Aquarela Brasileira; Os Sertões; Das
maravilhas do mar, fez-se o esplendor de uma noite;
É hoje; E por falar em saudade; Festa Profana; E deu a louca no
Barroco.
– Não havia percebido a “maldição a
longo prazo” vivida pelo Salgueiro. De acordo com o autor, a escola ainda é
refém do refrão impactante e bombante de Peguei um Ita no Norte e tenta
encontrar em outros temas, outros refrões uma forma de reviver com a mesma
intensidade o “Explode coração na maior felicidade. É lindo meu Salgueiro
contagiando e sacudindo essa cidade”.
– Ele pontua um comportamento padrão da
Beija-Flor. Sempre que tem um resultado ruim, no ano seguinte, a escola recorre
algo da temática africana como enredo. Tipo 2015, com o polêmico enredo sobre Guiné
Equatorial.
– E que coragem da Caprichosos de
Pilares em 1985. Se você não sabe o motivo, o livro explica direitinho!
No geral, o autor afirmou que o sucesso
de um samba passa por vários fatores: a forma como música e letra apresentam o
enredo; em alguns casos, a melodia ajuda a tornar presente quem não seria
mostrado na avenida. A forma como descrevem o tema a ser apresentado. Alguns
extremamente fieis, outro tomando licenças poéticas. E ainda aqueles que conseguiram
incentivar criações de carnavalescos e intérpretes em suas respectivas funções.
Claro que houve os casos “abençoados” onde tudo, até o que daria errado ou não
parecia tão bom, funciona. Óbvio que houve aquelas escolas que tinham tantas
certezas que tropeçaram nelas. Histórias embaladas por sambas que permaneceram
na memória do povo e até transcenderam o que era esperado inicialmente delas.
Antes que eu me esqueça: sabe lá o que é
receber uma sinopse de enredo escrita por Martinho da Vila? Então, os orixás
disseram (o equivalente no idioma deles) amém porque desta missão nasceu Kizomba.
Um enredo que é a afirmação da força da raça negra.
Confesso que, enquanto mangueirense
criada e embalada com os títulos das homenagens à Braguinha (supercampeã de
1984: não tenho memória), Caymmi (1986: me lembro mais do samba que do desfile)
e, especialmente, Carlos Drummond de Andrade (desfile de 1987 que, se bobear, lembro
algumas coisas e sei o samba até hoje), me surpreendeu a escolha dele pelo
enredo de 1990, Deu a louca no Barroco. De certa forma, achava que só eu
me lembrava deste desfile sobre a sonhadora e delirante Sinhá Olympia, de Ouro
Preto, onde a Mangueira veio linda… até as coisas darem errado (algo normal
no histórico da escola de Cartola). Ao destacar o aspecto de “testemunho” deste
desfile, que, segundo o autor, foi um “desfile romântico e retrô” em meio a
então era da tecnologia, representada no enredo da Mocidade. De certa forma,
algo visto neste ano, onde a verde e rosa veio com um enredo emocionante e
menos pirotécnico e exuberante que as coirmãs (a escola vive uma eterna crise
financeira que prejudicou os últimos carnavais). Não ganhou, mas só de nenhum
carro ter batido na torre onde ficam os fotógrafos e cinegrafistas (como
aconteceu nos últimos dois anos) e da escola ter fechado o desfile dentro do
tempo (como não aconteceu nos últimos anos) já fiquei feliz.
Enfim, não dá para contar tudo, porque é
um livro que precisa ser saboreado pelo leitor. Eu não sei sambar (falta de
coordenação motora faz com que meu melhor samba me faça parecer um boneco do
posto baleado), não tenho talento musical, mas sempre me emociono diante de uma
bateria. É pouco provável que você algum dia me encontre por livre e espontânea
vontade como foliã (não sou fã de multidões). No entanto, adoro ouvir
histórias, gosto de aprender formas de encarar o mundo, até para contar aos
outros. Eu vivia brincando que, se tivesse seguido o plano #2 e me tornado
professora de Português, trabalharia os samba-enredo em sala de aula para
discutir interpretação de texto… Quer coisa mais difícil que criar a partir
da ideia de outro e para ser uma parte grande da alma deste trabalho? A Redação
do ENEM está aí mostrando anualmente o tamanho da encrenca.
Sambas citados no livro:
Aquarela Brasileira:
Império Serrano, 1964
Festa para um rei negro:
Salgueiro, 1971
Os Sertões: Em cima da
hora, 1976
O teu cabelo não nega (só dá lalá):
Imperatriz Leopoldinense, 1981
É hoje: União da Ilha,
1982
Bum bum paticumbum prugurundum:  Império Serrano, 1982
Ziriguidum 2001:
Mocidade Independente de Padre Miguel, 1985
E por falar em saudade:
Caprichosos de Pilares, 1985
Kizomba, festa da raça:
Vila Isabel, 1988
Festa Profana: União
da Ilha, 1989
Liberdade, Liberdade, abra as asas sobre nós:
Imperatriz Leopoldinense, 1989
E deu a louca no Barroco:
Mangueira, 1990
Peguei um Ita no Norte:
Salgueiro, 1993
Bacci!!!

Beta 

1 Comentário

  1. Sil de Polaris

    Uma postagem excelente, saborosa de ler, mas talvez eu possa desapontá-la ao dizer que não importo com carnaval, embora goste de samba, mas samba sem letra, como um samba de uma bateria animada fazendo um fuzuê contagiante e vigoroso por muitos minutos. Eu adoro um espetáculo musical feito por atabaques somente, que tem um som maravilhoso e poderoso de causar arrepios de prazer musical.

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