Não é o livro típico deste blog, mas vale a recomendação. Férias significa sair da rotina e abrir as possibilidades para experimentar coisas novas. Por isso, a sugestão dos relatos de uma francesa que não teve medo de viver o sexo. E ainda publicou um livro sobre o assunto…
A Vida Sexual de Catherine M. – Catherine Millet – Ediouro
(La vie sexuelle de Catherine M. – 2001)
Catherine Millet é diretora de redação da Art Press em Paris. Resolveu publicar este ensaio falando sobre as experiências sexuais que teve. E ela desfrutou – e ainda desfruta – do sexo com uma liberdade incomum. E avalia estas situações sem emitir julgamento de “olha, me imite!”, apenas algo como “acompanhe meu pensamento, compartilhe minhas experiências, julgue como preferir, mas saiba que eu não vou dar a mínima.”
O livro parte de um preceito interessante, mas ela descreve tudo tão desprovida de paixão que quase me convenceu de que não se divertiu nem um pouco. Então de que adiantaria tantas histórias? Acho que as heroínas dos romancinhos água-com-açúcar aproveitam muito mais do que ela. E olha que elas não fazem nem a 1/1000 da sombra do que fez Catherine.
Curiosidade:
– Quando o livro foi publicado, houve uma grande polêmica – sobre até que ponto seria verdade, seria exagero, vontade de chamar a atenção… Apenas lendo você tem chance de tirar as próprias conclusões. Sinceramente, do meio para o final, achei cansativo. Ela não trazia grandes novidades e tratava o assunto com uma frieza de apavorar…
Links: www.ediouro.com.br – editora brasileira do livro
Matérias sobre o livro:
SEXO
14/01/2002
A Vida Sexual de Catherine M.
Francesa desafia tabus ao escancarar suas aventuras libertinas
–>Marina Monzillo – AFP
Catherine Millet, 53 anos, poderia ser apenas mais uma das tantas intelectuais de meia-idade que vivem na França, não fosse seu nome ligado ao escândalo e à polêmica. Isso acontece porque a crítica de arte e diretora de redação da prestigiada revista Art Press, de Paris, resolveu corajosamente expor seu rosto, seu corpo e sua mente em um livro que escancara suas memórias sexuais: A Vida Sexual de Catherine M. (Ediouro, 220 págs., R$ 24,90).
E Catherine tem muito o que contar. Libertina sem culpa e adepta do sexo grupal, ela fala de masturbação, fantasias, desejos e, principalmente, narra suas experiências com dezenas de homens em uma mesma noite, em festas, clubes, carros, parques, beira de estradas e capelas. Desde quando perdeu a virgindade, aos 18 anos, contabiliza centenas de anônimos com quem já fez sexo, simplesmente, pelo sexo.
Decepciona-se quem espera um clima picante do relato. As descrições da autora surpreendem pela frieza e racionalidade. Catherine não se mostra para chocar ou levantar bandeiras. Ela instiga o desafio a tabus, preconceitos e julgamentos. Aí reside o valor de sua obra.
Sua ousadia foi além. Durante os últimos 20 anos, posou nua para fotos tiradas por seu marido, Jacques Henric. As imagens estão no livro Légendes de Catherine M., ainda inédito por aqui, mas que serviria como um complemento visual perfeito à autobiografia de Catherine.
De cara, A Vida Sexual de Catherine M. se transformou em sucesso. Vendeu mais de 300 mil exemplares na França e virou o assunto das rodas parisienses. No Brasil, promete feito parecido: arregalar os olhos dos puritanos e despertar a curiosidade. Império dos sentidos
http://www.blogger.com/
ASPAS REALITY SHOWS: Jean Baudrillard
“Banalidade mortífera”, copyright Folha de S. Paulo, 10/06/01
“Toda a nossa realidade se tornou experimental. Na ausência de destino, o homem moderno está entregue a uma experimentação sem limites sobre si mesmo. Duas ilustrações recentes: uma, o programa ‘Loft Story’ (1), da ilusão da realidade ao vivo na mídia; outra, Catherine Millet (2), da ilusão fantasmática do sexo ao vivo.
O loft se tornou um conceito universal, uma condensação de parque de diversões humano, gueto, ‘huis clos’ e ‘Anjo Exterminador’. A reclusão voluntária como laboratório de um convívio sintético, de uma socialidade telegeneticamente modificada.
É então, quando tudo é mostrado (como em ‘Big Brother’, nos ‘reality shows’ etc.), que percebemos que não há mais nada a ver. É o espelho da platitude, do grau zero, onde se comprova, contrariando todos os objetivos, o desaparecimento do outro e talvez mesmo do fato de que o ser humano não é fundamentalmente um ser social. O equivalente a um ready-made -transposição exata da vida de todo dia, ela mesma já falsificada por todos os modelos dominantes. Banalidade sintética, fabricada em circuito fechado e sob tela de controle.
Nisso o microcosmo artificial do loft é parecido com a Disneylândia, que dá a ilusão de um mundo real, de um mundo exterior, enquanto os dois são exatamente idênticos. Todos os Estados Unidos são uma Disneylândia, e estamos todos no loft. Não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, já estamos nele -o universo televisual é apenas um detalhe holográfico da realidade global. Até em nossa existência mais cotidiana já estamos numa situação de realidade experimental. E é aí que surge o fascínio por imersão e por interatividade espontânea. Trata-se de voyeurismo pornô? Não.
O sexo está em qualquer lugar, mas não é isso que as pessoas querem. O que elas querem profundamente é o espetáculo da banalidade, que hoje é a verdadeira pornografia, a verdadeira obscenidade: a da nulidade, da insignificância e da platitude. No extremo oposto do Teatro da Crueldade. Mas talvez exista aí uma forma de crueldade, pelo menos virtual. No momento em que a televisão e a mídia são cada vez menos capazes de prestar conta dos fatos (insuportáveis) do mundo, elas descobrem a vida cotidiana, a banalidade existencial como o acontecimento mais mortífero, como a atualidade mais violenta, o próprio local do crime perfeito. O que é, na verdade. E as pessoas ficam fascinadas, fascinadas e aterrorizadas pela indiferença do nada-a-dizer, nada-a-fazer, pela indiferença de sua própria existência. A contemplação do crime perfeito, da banalidade como novo rosto da fatalidade, tornou-se uma verdadeira disciplina olímpica ou o último avatar dos esportes radicais.
Dois tabuleiros Tudo isso reforçado pelo fato de que o próprio público é mobilizado como juiz, que ele mesmo se torna Big Brother. Estamos além do panóptico, da visibilidade como fonte de poder e de controle. Não se trata mais de tornar as coisas visíveis a um olhar exterior, mas de torná-las transparentes a si mesmas, por perfusão do controle na massa e apagando imediatamente os vestígios da operação. Assim os espectadores são envolvidos em uma gigantesca contratransferência negativa sobre si mesmos, e, mais uma vez, é daí que vem a atração vertiginosa desse tipo de espetáculo.
No fundo tudo isso corresponde ao direito e ao desejo imprevisível do ser imprescritível. De não ser nada e de ser visto como tal. Há duas maneiras de desaparecer: ou exigimos não sermos vistos (é a problemática atual do direito à imagem) ou caímos no exibicionismo delirante de nossa nulidade. Tornamo-nos nulos para ser vistos e considerados como nulos -proteção definitiva contra a necessidade de existir e a obrigação de ser.
Daí a exigência contraditória e simultânea de não ser visto e de ser perpetuamente visível. Todo mundo joga nos dois tabuleiros ao mesmo tempo, e nenhuma ética ou legislação pode elucidar esse dilema: o do direito incondicional de ver e aquele, igualmente incondicional, de não ser visto. A informação máxima faz parte dos direitos humanos, portanto também a visibilidade forçada, a superexposição às luzes da informação.
A expressão de si mesmo como forma extrema de confissão, de que falou Foucault. Não guardar nenhum segredo. Falar, falar, comunicar incansavelmente. Essa é a violência feita ao ser singular e a seu segredo. E ao mesmo tempo é uma violência feita à linguagem, pois a partir daí ela também perde sua originalidade, não é mais que um meio, um operador de visibilidade, perde qualquer dimensão irônica ou simbólica quando a linguagem é mais importante do que aquilo que se diz.
E o pior nessa obscenidade, nesse despudor, é a participação forçada, essa cumplicidade automática do espectador, que é resultado de uma verdadeira chantagem. É esse o objetivo mais claro da operação: o servilismo das vítimas, mas o servilismo voluntário, aquele das vítimas que gozam a dor que lhes causam, a vergonha que lhes impõem. A participação de toda uma sociedade em seu mecanismo fundamental: a exclusão interativa, é o cúmulo! Decidida em comum, consumida com entusiasmo.
Se tudo acaba na visibilidade, que, assim como o calor na teoria da energia, é a forma mais degradada de existência, entretanto o ponto crucial é conseguir transformar essa perda de todo o espaço simbólico, essa forma extrema de desencanto com a vida, num objeto de contemplação, de sideração e de desejo perversos. ‘A humanidade que um dia com Homero foi objeto de contemplação para os deuses olímpicos hoje o é para si mesma. Sua alienação de si própria atingiu um grau que a faz viver sua própria destruição como uma sensação estética de primeira ordem’ (Walter Benjamin).
Duplo contra-senso O experimental substitui assim em toda a parte o real e o imaginário. Em toda a parte os protocolos da ciência e da verificação nos são inoculados, e estamos a ponto de dissecar, em vivissecção, sob o escalpelo da câmera, a dimensão relacional e social, fora de qualquer linguagem e contexto simbólico.
Catherine Millet também é experimental, outro gênero de vivissecção: todo o imaginário da sexualidade é descartado, resta apenas um protocolo em forma de verificação ilimitada do funcionamento sexual, de um mecanismo que no fundo não tem mais nada de sexual.
Duplo contra-senso: o de transformar a própria sexualidade em referência final. Reprimida ou manifestada, a sexualidade é no máximo uma hipótese e, enquanto hipótese, é falso transformá-la em uma verdade e uma referência. A própria hipótese sexual talvez seja apenas uma fantasia, e de qualquer modo é na repressão que a sexualidade assumiu essa autoridade e essa aura de atração estranha -quando manifesta, ela perde até essa qualidade potencial; daí o contra-senso e o absurdo da passagem ao ato e de uma ‘liberação’ sistemática do sexo: não se ‘libera’ uma hipótese.
Quanto a demonstrar o sexo por meio do sexo, que tristeza! Como se tudo não estivesse no deslocamento, no desvio, na transferência, na metáfora: tudo está no filtro da sedução, no desvio, não no sexo e no desejo, mas no jogo com o sexo e o desejo. É isso que de qualquer maneira torna impossível a operação do sexo ‘ao vivo’, assim como a morte ao vivo ou o acontecimento ao vivo na informação -tudo isso é incrivelmente naturalista.
É a pretensão de fazer tudo ocorrer no mundo real, atirar tudo numa realidade integral. E em algum lugar isso é a própria essência do poder. ‘A corrupção do poder é inscrever no real tudo o que era da ordem do sonho…’
A chave nos é dada por Jacques Henric em sua concepção da imagem e da fotografia: é inútil ocultar a face, nossa curiosidade pelas imagens é sempre de ordem sexual -tudo o que buscamos nelas é afinal o sexo e muito especialmente o sexo feminino. Aí está não apenas o quadro ‘Origem do Mundo’ (Courbet), mas a origem de todas as imagem. Portanto, vamos em frente sem desvios e fotografemos essa única coisa, obedeçamos sem entraves à pulsão escópica! É esse o princípio de uma ‘realerotik’, cujo ‘acting-out’ copulativo perpétuo de Catherine Millet é o equivalente para o corpo: já que afinal aquilo com que todo mundo sonha é o uso sexual ilimitado do corpo, passemos sem desvios à execução do programa!
Nada mais de sedução, nada mais de desejo ou mesmo de gozo, tudo está lá, na repetição inumerável, num acúmulo em que a quantidade teme acima de tudo a qualidade. Sedução prescrita. A única pergunta que gostaríamos de fazer é aquela que o homem murmura ao ouvido da mulher durante uma orgia.
Ela está na verdade além do fim, lá onde todos os processos ganham um ritmo exponencial e só podem se duplicar indefinidamente. Assim como para Jarry em ‘Le Surmâle’, uma vez atingido o limite crítico no amor, podemos fazê-lo indefinidamente, é o estágio automático da máquina sexual. Quando o sexo não passa de um ‘sex-processing’, se torna transfinito e exponencial. Mas não atinge sua meta, que seria esgotar o sexo, chegar ao fim de seu exercício. Isso é evidentemente impossível. Essa impossibilidade é tudo o que resta de uma vingança da sedução ou da própria sexualidade contra seus operadores sem escrúpulos -escrúpulos por si mesmos, por seu próprio desejo e por seu próprio prazer.
‘Pensar numa mulher tirando o vestido’, diz Bataille. Sim, mas a ingenuidade de todas as Catherine Millet é pensar que tiramos o vestido para nos despir, para nos desnudar e assim alcançar a verdade nua, a do sexo ou a do mundo. Se tiramos o vestido, é para parecer não aparecer nua como a verdade, mas para nascer no reino das aparências, isto é, da sedução -o que é exatamente o contrário.
Contra-senso total dessa visão moderna e desencantada que considera o corpo como um objeto que só espera ser despido e o sexo como um desejo que só espera passar ao ato e gozar. Enquanto todas as culturas da máscara, do véu, do ornamento dizem exatamente o contrário: dizem que o corpo é uma metáfora e que o verdadeiro objeto de desejo e de gozo são os signos, as marcas que o arrancam de sua nudez, de sua naturalidade, de sua ‘verdade’, da realidade integral de seu ser físico. Em toda a parte é a sedução que arranca as coisas de sua verdade (incluindo sua verdade sexual). E, se o pensamento tira a roupa, não é para se revelar nu, não é para desvelar o segredo daquilo que até então estaria oculto, é para fazer surgir esse corpo como definitivamente enigmático, definitivamente secreto, como objeto puro cujo segredo jamais será levantado, nem tem como ser.
Nessas condições, a mulher afegã de ‘moucharabieh’, a mulher engaiolada na capa da revista ‘Elle’ fazem as vezes de alternativa ruidosa a essa virgem louca de Catherine Millet. O excesso de segredo contra o excesso de despudor.
Aliás, esse próprio despudor, essa obscenidade radical (como a de ‘Loft Story’), é mais um véu, o último dos véus intransponíveis, aquele que se interpõe quando acreditamos tê-los rasgado todos. Desejaríamos alcançar o pior, o paroxismo da exibição, o desnudamento total, a realidade absoluta, ao vivo -e ao dilacerado vivo não chegamos nunca. Nada a fazer, o muro do obsceno é intransponível. E paradoxalmente essa busca inútil ressalta ainda mais a regra fundamental do jogo: a do sublime, do segredo, da sedução, a mesma que buscamos até a morte na sucessão de véus rasgados.
O que ‘Loft Story’ pretende demonstrar é que o ser humano é um ser social, o que não é garantido. O que Catherine Millet pretende demonstrar é que ela é um ser sexuado, o que também não é de modo nenhum garantido. O que se verifica nessas experimentações são as próprias condições da experimentação, simplesmente levadas a seu limite. O sistema se decodifica à perfeição em suas extravagâncias, mas é o mesmo em toda parte. A crueldade é a mesma em toda a parte. Tudo isso afinal se resume, para lembrar Marcel Duchamp, a um ‘levantamento de poeira’.
Notas
1. Programa transmitido pelo canal de TV francês M6 que mostra o cotidiano de onze jovens vivendo em um loft;
2. Autora de ‘La Vie Sexuelle de Catherine M.’ (A Vida Sexual de Catherine M., ed. Seuil), em que descreve encontros sexuais que manteve com centenas de anônimos. Seu companheiro, Jacques Henric, lançou o livro de fotos ‘Légendes de Catherine M.’ (Lendas de Catherine M., ed. Denoël), em que retrata a escritora nua e lhe vota sua admiração, citando Espinosa, Bataille etc.
Jean Baudrillard é filósofo francês, autor de, entre outros, ‘A Transparência do Mal’ (ed. Papirus) e ‘As Estratégias Fatais’ (ed. Rocco). A íntegra deste texto foi publicado no jornal ‘Libération’. (Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves)”
LEITURA DO MÊS – DEZ 01 / JAN 02
A vida sexual de Catherine M.
Obra não é um estimulante, mas uma reflexão inteligente e insolitamente franca
MARIO VARGAS LLOSA
Diz a lenda que, em sua noite de núpcias, o jovem Victor Hugo fez amor oito vezes com sua esposa, a casta Adèle Foucher, que, em consequência desse recorde para o sexo varonil estabelecido pelo fogoso autor de Os Miseráveis, ficou vacinada para sempre contra esse tipo de atividades. (Sua tortuosa aventura de adúltera com o feio Saint Beuve não teve nada que ver com o prazer, mas com o despeito e a vingança.) O sábio Jean Rostand ria daquele recorde huguesco, comparando-o com as proezas que no domínio da fornicação outros espécimes realizam.
Que são, por exemplo, aquelas oito efusões consecutivas do vate romântico, comparadas com os 40 dias e 40 noites em que o sapo copula com a sapa sem se dar um só momento de pausa? Pois bem, graças a uma aguerrida francesa, a senhora Catherine Millet, os anfíbios anuros, os coelhos e outros grandes fornicadores do reino animal encontraram, na medíocre espécie humana, uma competidora capaz de se medir com eles de igual para igual, e até de derrotá-los em inúmeras cópulas.Quem é a senhora Catherine Millet? Uma distinta crítica de arte, de 53 anos, que chefia a redação da ArtPress, em Paris, e autora de monografias sobre arte conceitual, o pintor Ives Klein, o desenhista Roger Tallon, a arte contemporânea e a crítica de vanguarda. Em 1989, foi a representante da seção francesa da Bienal de São Paulo e, em 1995, representante do Pavilhão francês da Bienal de Veneza. Sua fama no entanto é mais recente. Resulta de um ensaio sexual autobiográfico recém-publicado pela Seuil, La Vie Sexuelle de Catherine M., que tem causado notável furor e encabeça há várias semanas a lista de livros mais vendidos na França.
Reflexão – Direi de imediato que o ensaio da senhora Millet vale muito mais que o ridículo alvoroço que o tem promovido e, também, quem se precipite a lê-lo atraído pela auréola erótica ou pornográfica que o enfeita vai ter uma decepção. O livro não é um estimulante sexual nem uma sofisticada descrição de rituais a partir da experiência erótica, mas uma reflexão inteligente, crua, insolitamente franca, que adota às vezes o aspecto de um relatório clínico.
A autora se debruça sobre sua própria vida sexual com o rigor glacial e obsessivo desses miniaturistas que constroem barcos dentro de garrafas ou pintam paisagens na cabeça de um alfinete. Direi também que esse livro, embora interessante e corajoso, não é propriamente agradável de ler, pois a visão do sexo que ele deixa no leitor é quase tão fatigante e deprimente quanto a que deixaram em madame Victor Hugo as oito investidas maritais de sua noite nupcial. Catherine Millet começou sua vida sexual bem tarde – aos 17 anos – para uma moça de sua geração, a da grande revolução dos costumes que maio de 1968 representou.
Mas, de imediato, começou a recuperar o tempo perdido, fazendo amor a torto e a direito, e com todos os lugares possíveis de seu corpo, a um ritmo verdadeiramente enlouquecedor, até chegar a uns números que, calculo, devem ter superado com folga aquele milhar de mulheres que, em sua autobiografia, se gabava de haver levado para a cama o concupiscente polígrafo Georges Simenon.
Insisto no valor quantitativo porque ela o faz, na extensa primeira parte de seu livro, intitulada exatamente O número, onde documenta sua predileção pelos partouzes, o sexo promíscuo, os entreveros coletivos. Nos anos 70 e 80, antes que a liberdade perdesse impulso e, graças à aids, deixasse de estar em moda em toda a Europa, a senhora Millet – que se descreve como uma mulher tímida, disciplinada, tendendo mais para o dócil, que nas relações sexuais encontrou uma forma de comunicação com seus congêneres que não lhe ocorre facilmente em outros aspectos da vida – fez amor em clubes privados, no Bois de Boulogne, à beira de rodovias, vestíbulos de prédios, bancos públicos, além de casas particulares e, alguma vez, na parte traseira de uma caminhonete na qual, com ajuda de seu amigo Eric, que organizava a fila, deu conta de dezenas de solicitantes em umas tantas horas.
Digo solicitantes porque não sei como chamar a esses companheiros de aventura da autora, fugazes e anônimos. Não clientes, claro, porque Catherine Millet, embora tenha prodigalizado seus favores com generosidade sem limites, nunca cobrou por fazê-lo. Nela o sexo tem sido sempre inclinação, esporte, rotina, prazer, mas nunca profissão ou negócio. Apesar da incontinência com que o pratica, diz que nunca foi vítima de brutalidades nem se sentiu em perigo; que, inclusive em situações que podiam chamar-se limítrofes da violência, bastou-lhe uma simples reação negativa para que os outros respeitassem sua decisão. Tem tido amantes e agora tem um marido – um escritor e fotógrafo, que acaba de publicar um álbum de nus de sua mulher -, mas um amante é alguém com quem se supõe existir uma relação um tanto estável, ao passo que a maioria dos companheiros sexuais de Catherine Millet aparece como silhuetas transitórias, tomadas e abandonadas com negligência, quase sem que mediasse um diálogo entre eles. Indivíduos sem nome, sem cara, sem história, os homens que desfilam por esse livro são, como aquelas vulvas furtivas dos livros libertinos, nada mais que umas vergas ambulantes.
Até agora, na literatura confessional, só os varões libertinos faziam assim o amor, em seqüências cegas e no atacado, sem se preocupar sequer em saber com quem. Esse livro mostra – e talvez seja o que há de verdadeiramente escandaloso nele – que se enganam os que acreditavam que o sexo em cadeia, transformado em simples ginástica carnal, dissociado por completo do sentimento e da emoção, era privativo de quem usa calças compridas.
Convém destacar que Catherine Millet não faz nessas páginas o menor alarde de feminista. Não exibe sua riquíssima experiência sexual como uma bandeira reivindicatória ou uma acusação aos preconceitos e discriminações de que sofrem as mulheres no âmbito sexual. Seu testemunho está despojado de arengas e não aparece nele a menor pretensão de querer ilustrar, com o que conta, alguma verdade geral, ética, política ou social. Não, ao contrário, seu individualismo é extremado, e muito visível em seu escrúpulo de não querer tirar, de sua experiência pessoal, conclusões válidas para todo mundo, sem dúvida por não acreditar que elas existam. Então por que tornou pública, mediante uma auto-autópsia sexual sem precedentes, essa intimidade que a imensa maioria de fêmeas e varões esconde sob sete chaves? Pareceria que é para ver se desta forma se entende melhor, se chega a ter a perspectiva suficiente para transformar em conhecimento, em idéias claras e coerentes, esse poço escuro de iniciativas, arrebatamentos, audácias, excessos e também confusão que, apesar da liberdade com que o assumiu, o sexo ainda é para ela.
Fantasma invertebrado – O que mais desconcerta nessas memórias é a frieza com que estão escritas. A prosa é eficiente, empenhada em ser lúcida, com frequência abstrata. Mas a frieza não só impregna a expressão e o raciocínio. É também a matéria, o sexo, o que exala um hálito gelado, enregelante, e em muitas páginas deprimente. A senhora Millet nos garante que muitos de seus parceiros a satisfazem, a ajudam a materializar seus fantasmas, que passou bons momentos com eles. Mas de fato a saciam, a fazem gozar? A verdade é que seus orgasmos parecem com freqüência mecânicos, resignados e até tristes. Ela própria o dá a entender, de modo bastante inequívoco, nas últimas páginas de seu livro, quando assinala que, apesar da diversidade das pessoas com as quais faz amor, nunca se sentiu tão realizada sexualmente quanto ao praticar (“com a pontualidade de um funcionário”) a masturbação. Não é portanto sempre correta aquela generalizada crença machista (agora esta adjetivação é discutível) de que, em matéria de sexo, só na variação se encontra o prazer. Que o diga a senhora Millet: nenhum de seus incontáveis parceiros de carne e osso conseguiu destronar seu fantasma invertebrado.
Esse livro confirma o que toda literatura limitada ao sexual mostra à saciedade: que o sexo, dissociado das demais atividades e funções que constituem a existência, é extremamente monótono, de um horizonte tão limitado que no fim das contas se torna desumanizante. Uma vida imantada pelo sexo, e só por ele, rebaixa essa função a uma atividade orgânica primária, não mais nobre nem agradável do que o engolir por engolir, ou o defecar. Só quando a cultura o civiliza e o carrega de emoção e paixão e o reveste de cerimônias e rituais o sexo enriquece extraordinariamente a vida humana, e seus efeitos benfazejos se projetam por todos os aspectos da existência.
Para que esta sublimação ocorra é imprescindível, como o explicou George Bataille, que se preservem certos tabus e regras que enquadrem e freiem o sexo, de modo que o amor físico possa ser vivido – gozado – como uma transgressão. A liberdade irrestrita e a renúncia a toda teatralidade e formalismo em seu exercício, que é apresentada como uma conquista em certos enclaves do mundo ocidental, não contribuíram para enriquecer o prazer e a felicidade dos seres humanos graças ao sexo. Antes, contribuíram para banalizar e cegar, transformando físico em mera ginástica e rotina o amor, uma das fontes mais férteis e misteriosas do fenômeno humano.
Além do mais, convém não esquecer que essa liberdade sexual que se exibe com tanta eloquência no ensaio de Catherine Millet é privilégio de pequenas minorias. Ao mesmo tempo em que eu lia seu livro, aparecia na imprensa, aqui em Paris, a notícia do apedrejamento, numa província do Irã, de uma mulher que um tribunal de imãs fanáticos declarou culpada de aparecer em filmes pornográficos. Esclareçamos que “pornografia”, numa teocracia fundamentalista islâmica, consiste no fato de uma mulher mostrar seus cabelos. A culpada, de acordo com a lei corâmica, foi enterrada numa praça pública até os seios e apedrejada até a morte.
(Tradução de Magno Dadonas)
Narcisismo moderno é bem lucrativo
Interesse pelo livro de Catherine é típico da confusão entre vida pública e privada.
LUIZ ZANIN ORICCHIO
A expressão parece tão criativa quanto verdadeira: hoje já não se pode falar em invasão, mas em evasão de privacidade. Não se trata mais de proteger uma área de intimidade, de separar bem claramente o espaço público do privado, mas, deliberadamente, baralhar essa fronteira. A sociedade global que se contrói é tanto voyeurista quanto exibicionista. Aliás, os termos são complementares. Só assim se entendem alguns fenômenos, entre os quais o badalado livro La Vie Sexuelle de Catherine M., um prodígio de vendas na outrora reservada sociedade francesa.
Deve-se entender bem o que está acontecendo. Catherine pode dizer que busca alguma coisa pelo sexo, algum tipo de conhecimento, ascese. Ou prazer, simplesmente. Nada disso interessa realmente. O que conta é que seja dito aos outros. O desejo, ou seja lá o que for, sai da ordem do privado e ingressa na esfera da coisa pública.Não é outro o atrativo de um programa do tipo Big Brother, que foi inventado por um holandês chamado John de Mol e difundiu-se com sucesso no mundo todo. O esquema geral é simples: alguns homens e mulheres ficam confinados durante várias semanas em uma casa isolada. São vigiados o tempo todo por câmeras indiscretas. A cada semana um dos participantes é eliminado do “jogo”, pelos próprios companheiros e também pela votação dos espectadores. O esquema se parece um pouco a No Limite, exibido no Brasil. Mas a diferença é que em Grande Irmão não há nem mesmo o subterfúgio de tarefas que são propostas à maneira de uma gincana. Vai-se diretamente ao que interessa, à vida íntima das pessoas. E, vida íntima, claro, quer dizer sexualidade. As grandes audiências do programa acontecem quando os pares sexuais começam a se formar e partem para a ativa.Na Itália, o programa chamou-se Grande Fratello e transformou-se em êxito imediato. O sisudo Corriere della Sera acompanhou atentamente a subida do ibope local, cujo pico ocorreu quando o primeiro casal resolveu afinal ir às vias de fato e construiu uma espécie de cabaninha com toalhas, sob uma mesa, para se abrigar das câmeras.A versão francesa ganhou o nome de Loft Story. A razão: o grupo de moças e rapazes ocupa um loft em Paris, mas claro, o que conta é assonância com love story – o que escancara a verdadeira intenção do programa. Voyeurismo e exibicionismo sexual – mutuamente complementares, pois alguém só se exibe quando há outro alguém interessado em ver. Tal é a forma moderna do narcisismo, um amor de si mesmo devidamente difundido pela TV e pela Internet. E muito lucrativo para todo mundo.
A Vida Sexual de Catherine M.A Ediouro coloca no mercado brasileiro uma inédita autobiografia erótica “A Vida Sexual de Catherine M.”, best-seller que já vendeu mais de 300 mil exemplares na França, e virou escândalo com direito a críticas de intelectuais como Baudrillard, que o classificou de sexo ao vivo.O que faz com que uma respeitada crítica de arte decida abrir publicamente, com inédita crueza e sem qualquer máscara, os detalhes de sua movimentada vida sexual? Catherine descreve como depois de perder a virgindade aos 18 anos, começou sua carreira de serial lover, transando com vários homens ao mesmo tempo em lugares variados , clubes privados, à beira de estradas, bancos públicos, além de casas particulares , ela viveu fartamente o que se poderia chamar (sem ranço moral) de “sexo pelo sexo”, ou seja o sexo sem qualquer tipo de vínculo sentimental: o sexo numérico, consecutivo, anônimo, sem preâmbulos, sem romance, puro prazer. Suas descrições de cenas sexuais são precisas, quase distanciadas. Catherine faz amor com a mesma naturalidade com que respira.O livro alinha não só descrições minuciosas de seus muitos e ocasionais amantes com fotos também pouco reservadas. Tudo, é claro, vem embalado ( e justificado) por uma retórica bem francesa: “O texto e as fotos ao mesmo tempo que revelam, ocultam”, garante ela, que diz ter cansado de defender a liberdade sexual e a trangressão teoricamente e decidiu partir para a ação. “Acho que faltava um livro assim,que relatasse de forma exata as sensações essenciais de minha experiência”, diz a autora.Aos 53 anos, casada há cerca de 20 com o escritor Jacques Henric, autor do livro de fotos que a mostra em vários nús, lançado também este ano na França. Catherine decidiu expor-se com total despudor. Não há em seu relato traços de exibicionismo gratuito ou tentativa de psicologizar as experiências vividas. Apenas narra o amor físico, como tem se apresentado para ela, em todas as suas formas e possibilidades.Com esta autobiografia sexual, Catherine Millet honra a rica tradição literária erótica francesa. Revelando o que as pessoas esforçam-se para ocultar, ela tem a coragem de viver o sexo com uma liberdade incomum. É claro que essa ousadia causa impacto. Mas Catherine não pretende fazer escola, ou apontar caminhos. Muito pelo contrário. Este é um livro sexualmente incorreto, que Catherine assina embaixo com todas as letras, sem qualquer disfarce.
Sobre a autora: Bastante conhecida no meio de arte, Catherine Millet é diretora de redação da Art Press em Paris. Publicou, entre outros livros, A Arte Contemporânea, em 1997. Em 1989, foi a representante da seção francesa na Bienal de São Paulo e em 1995 do Pavilhão francês.
Beijos
Beta