Ciao!!!
“Pode ficar bem feliz: comprou um belo objeto, cheio de histórias. Se você prestar atenção, saberá ouvi-las, tenho certeza. É claro que você é a pessoa que estivemos esperando durante 28 anos. E quem lhe diz isso sou eu: as coisas acontecem quando têm que acontecer, nem meio segundo antes”
Esta frase, do Primeiro Interlúdio, é uma das que sintetizam o espírito do livro. Quem nunca parou para imaginar quanta vida existe em um objeto inanimado. Quantas histórias testemunhou. Quantas perdas sofreu. Quantos caminhos trilhou, trocando de casas, donos, despertando
ou não o interesse das pessoas.
Ao redor de uma chocolateira de porcelana, várias pessoas viveram intensamente. Algumas com finais felizes, outras com toques de amargo e também quem viveu demais e se arrependeu disso. Este é o fio condutor deste livro da autora catalã Care Santos, que foi coautora do O melhor lugar do mundo é aqui. E para uma chocólatra assumida, me vi instigada a embarcar nesta jornada.
Paixão por Chocolate – Care Santos – Record
(Desig de Xocolata – 2014)
Personagens: Sara, Aurora, Mariana e a chocolateira de porcelana
A história é dividida como se fosse uma opera, narrando histórias de personagens em épocas diferentes, unidos pela relação com um objeto em comum: uma chocolateira de porcelana onde estava gravado em letras na cor azul “Je suis à Madame Adélaïde de França”. Ao longo do tempo, estava com o bico maltratado, tinha perdido a tampa e o moedor, mas mesmo assim era capaz de contar histórias de outras épocas,
vozes que amaram, sofreram, viveram e compartilharam o gosto e o conforto trazidos por uma xicrinha de chocolate.
Comentários:
– O primeiro ato “Pimenta, Gengibre e Alfazema” conta a história de três amigos que se conheceram em um curso de técnicas para chocolateiros no início dos anos 90, quando Barcelona vivia a euforia pré-olímpica. Sara Rovira estudava História e sabia que herdaria a confeitaria da família. O caçula do trio Max Frey era americano, estudava Quimica e realizava pesquisa sobre as propriedades da manteiga de cacau. Oriol Patrol era autodidata e queria revolucionar a forma de usar o chocolate para criar. Max nem disfarçou a atração por Sara, que por sua vez só estava interessada em Oriol, que a ignorava.
– A história se passa em diferentes tempos, nem sempre cronologicamente (houve momentos em que me perdi na leitura), mostrando a amizade, as disputas e a evolução das ligações entre o trio de amigos tão distinto e tão inse parável. Tentando não dar spoilers, posso
dizer que passei por alguns momentos de real irritação com o que era narrado. Ah, sim, e meu queixo despencou (como se fosse desenho animado) com o desfecho desta parte que foi totalmente inesperado (pelo menos eu me senti surpreendida).
“Você deve saber qual é o arco perfeito de temperaturas necessário para que a manteiga de cacau dê lugar ao melhor chocolate possível, não é mesmo? Quarenta e cinco, 27, 32 graus centígrados. Bem, talvez pudéssemos ser mais sutis, mas no fundo o que acabo de dizer é verdade. acima ou abaixo dessa temperatura, mesmo que seja meio grau, só obtemos desastres. O chocolate, como as pessoas, é uma microestrutura extremamente complexa, por isso, é melhor fazer as coisas como devem ser feitas e não mexer em nada” (p.136-137)
– O segundo ato “Cacau, açúcar e canela” se passa na segunda metade do século 19, mostrando as relações e a forma como viviam os Turull e os Sampsons, duas famílias mais importantes de Barcelona. Neste ato, cada capítulo foi batizado com o nome de uma ópera em cartaz no Liceu, teatro frequentado pela elite da cidade, um dos cenários do status e das intrigas sociais.
– São quase 40 anos narrados a partir da observação de Aurora, a criada de Cándida, herdeira dos Turull. Nascida pouco depois da filha tão desejada, a órfã foi acolhida pela patroa e se tornou aquela que ouvia todas as confidências de Cándida. A ideia era que ela se casasse com Antônio, o herdeiro dos Sampsons, a mais famosa familia de chocolateiros da cidade. Entremeados pelas óperas e eventos no Liceu, as vidas se desenrolam com momentos tão dramáticos e intensos quantos os narrados nas apresentações no palco. Porque nem sempre as decisões tomadas garantem o final feliz.
“Eis uma consequência de ficar velho: de repente mudam todo o cenário, o argumento, o diretor da orquestra… e você insiste em continuar representando o mesmo papel” (p.271)
– E o terceiro ato “Pimenta, Cravo, Chicória” se passa em Barcelona, em 1777. Em cartas para Madame Adélaïde, o secretário pessoal dela e da irmã, Madame Victoria, Victor Philibert Guillot narra os desencontros, aventuras, problemas e surpresas enfrentadas por duas comitivas – uma francesa e outra inglesa – enviadas à cidade para negociar com o mestre chocolateiro Fernández.
– As notícias eram de que ele havia inventado uma máquina que fazia a mistura dos ingredientes que davam ao chocolate que ele fabricava um sabor além do especial, inigualável. A meta era conseguir a exclusividade dos serviços – e além de levar a melhor sobre os ingleses, descobriram que teriam que lidar com a concorrência dos integrantes do grêmio dos chocolateiros.
– Os franceses chegaram primeiro à cidade e tiveram que lidar com a surpresa de serem enganados e roubados por golpistas – que inclusive levaram a chocolateira de porcelana exclusiva da realeza enviada como presente ao mestre Fernández. O atento Guillot percebe algumas intrigas em andamento e tenta decifrar o mistério. Ainda mais depois de conhecer Mariana, a bela esposa do chocolateiro e perceber que ela corria perigo por saber demais sobre o ofício (um absurdo: ela era uma mulher! ¬¬), era ameaçada por ser bonita e por defender a invenção do marido. Durante os 16 dias na cidade, ele vai ser contador de história, engendrador de planos, espião, detetive, tudo pela felicidade das patroas (que amavam o chocolate criado pelo mestre Fernández), pelo bem da França e, claro, pelo prazer de ser o herói de uma aventura e de uma dama em perigo.
“Você já sabem o que dizem: a paixão pelo chocolate não deve ser adiada nem reprimida. É preciso saber quando convêm cair em tentação” (p.437)
Arrivederci!!!
Beta
Ui, eu tenho esse pensamento mesmo ! Eu surpreendi-me várias vezes imaginando ou pensando que histórias existiriam por trás de objetos, em suas memórias, como o que tal casa teria sido antes de tornar-se aquela loja de tecidos atualmente. Eu tenho essa atitude para com lugares também, pensando o que havia sobre aquele chão muito antes de tornar-se um calçadão. Eu teria esses pensamentos sobre uma chocolateira antiga !!!